20070526

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Eu parado, feito da matéria com que se fazem as pessoas : género de carne, sol e água, osso para dar carne ao
corpo e uma espécie de aura que me afaga, que me sustem o pensar e que me dá o mesmo, a toda a hora.
Eu, a preparar discursos que não vou dizer a ninguém, a soltar frases para o branco sempre igual do tecto,
a estender um braço à musica que vai saindo e que vai batendo e perfurando as paredes do prédio. Os papéis
todos, todos os mesmos.
Aqui não há muito porque gritar, as equações são simples, aliás, são impossíveis e quando as coisas se tornam impossíveis
é simples saber-lhes o fim, aqui é o fim, aqui onde as coisas são feitas da mesma matéria que eu : são pessoas,
dizem-se pessoas e eu de pessoa não tenho nada; não quero ser como eles : género de carne, sol e àgua, osso para dar carne ao
corpo e uma espécie de aura que me afaga, que me sustem o pensar e que me dá o mesmo, a toda a hora.
Eu, parado. Não quero morrer queimado, nem quero morrer sequer. Não quero cair no momento em que me vou a
levantar para andar e correr. Não quero viver eternamente, mas não quero morrer. Morrer só acontece
aos tolos que se deixam morrer, idiotas! Eu não me vou deixar morrer assim, facilmente, como as pessoas
que se cansam, que se aninham numa cama, que se alugam a uma doença que não lhes paga nada e que morrem à
fome de vida porque a doença se cansou, fechou as portas e saiu sem pagar a renda, a rir-se da cara do senhorio
que já nem cara tem, que é agora comido sabe-se lá... pelo quê.
Continuo a entoar cânticos com palavras que não me pertencem, a falar para as paredes. Continuo aqui, mãe,
quietinho à espera que acordes; nunca te deixaste morrer, sempre foste assim, forte e fria e nem mesmo assim
te escapou a tentação de lhe dar o peito .
Cada vez mais inúteis.
O meu corpo não é meu, já te tinha dito. Funciono como uma peça, uma pilha num engenho estupidamente sólido
que se vai montando ao longo dos anos e que me vai fazendo, a cada milesimo de segundo que se move, pensar que
não sou quem sou, quem aparento. Sou um conjunto de memórias de outro eu que fui perdendo no meio dos meus outros eus,
das outras pessoas que fui e que já não sou. Sou um conjunto dessas pessoas todas que usei sem pensar que as usava,
sem sentir que as possuia e que as deixava longe de si. Tudo por tua causa, mãe, e agora estamos aqui os dois: cada vez mais
inuteis. Tu apodreces, eu não sei viver aqui, preso a este nojo de pele e osso que sou por fora, que não sou por dentro.
Como tu, já não tenho força para me levantar mas não vou morrer. Não sou idiota.

2 comentários:

Anónimo disse...

sou tua mãe.

pensas que sou tua mãe? não te vou pagar o jantar. :D

és um bocado idiota who loves the sun.

pâ pâ pâ pââââ...


e gostei de ler os dois textos.

black sasuke disse...

esta muito fixe....tens jeito.....