20091023

poema de quem nunca viu o pôr-do-sol

abro a janela

e uma laranja desenhada no horizonte
avançando docemente
para o precipício infinito to tempo

se me rasgares o corpo
todo eu sou flores
e frágil avanço
nos finos cabelos de um velho

e todo o sangue
que um dia me construiu
sopra agora triste
nos pulmões trémulos de uma onda

abro as mãos delicadamente
e gesticulo o mundo
dois barcos junto da laranja magnética do horizonte
avançando docentemente
para o definitivo calor do Outono

coração imagina
todas as ondas
a respirarem para ti
numa taquicardia de espanto
raiva
e
dor

aos solavancos
descendo dos olhos dos olhos
as cidades ardem
no fundo do mar

se me rasgares a alma
o teu medo de sangue
come-te viva

coração imagina
fotografias onde somos nós
todas as cidades e todas as pessoas
a desaparecer num fiozinho amarelo
depois escuro
depois cinza
depois escuro
depois cinza

abro as mãos suavemente
e lanço o fumo à geada cortante
da madrugada

vai coração corre
pronto na ponta de todas as seringas
cortar esse limão laranja
em gumes tão grossos quanto um fio de água
tão lentos como uma navalha nos ossos
tão ardentes como o amor nas veias.

seduzindo as pontas negras
do fim da madrugada
abandonar-me-ei junto a qualquer rio
e talvez seque,

outra vez seque
esperando,

esperando.

20091008

enternece-me a chuva e as pessoas à chuva, enternece-me que estejam de baixo da minha felicidade.
enternece-me que seja isto o mais pequeno sentimento que por alguém consigo sentir. e por isso
é simples, para mim, esboçar toscamente uma escada em direcção ás nuvens, subir lentamente, ficar
enorme, e enternecer-me um pouco mais na distancia de uma lágrima.

porque a minha cama está desfeita e quente e só chove longe de mim, e é longe de mim que eu sinto a saudade,
embora ela me apareça caída, quase todas as noites, no torto sofá que repousa agitado no momento em que fecho os
olhos e não adormeço, adormeço, me lembro de vocês, adormeço, acordo, e vos adoro. todos os dias. todos os dias.

como se a chuva fosse o compasso, e a minha dança me afastasse, cada vez mais, de mim próprio e a saudade me tornasse,
cada vez mais enternecido, numa pequena nuvem branca.


meus amigos,
a vocês
como nunca amarei ninguém mais na vida.

20090804

bebo só
para engordar
enquanto desço
o sol
e o fumo dá nós em direcção ao tecto
e morre na antagonia da gravidade

para engordar
nesta estação
e não levantar a cada onda
os meus pés que custam
o mundo inteiro
a cair

e vejo miudos
que beijam as mães
as mesmas
que na noite anterior
e em todas as noites do futuro
até q a morte engorde e morra
enfiam gentilmente
todas as vontades
gentilmente
gentilmente
pelo cu a cima
numa espécie de dupla penetração
que embala a noite dos seus maridos
que num sopro pequeno de obeso cansado
adormecem depois

e vejo que descem como eu
o sol
e o fumo continua a dar nós
em direcção ao tecto
e a fugir ao mais pequeno sopro
da boca das esposas cansadas
num beijo de tédio e promessa

enquanto que no fundo do mundo
alguém guarda
com as mãos abertas
e uma lágrima fácil atenta
os corvos negros ( da doença )
que todas as noites desejam
gentilmente
gentilmente
penetrar os pulmões
de
dois ou três
cabrões.

20090609

certas coisas não são para ser ditas
não podemos correr o risco
de as perder
como os lobos uivam á noite
a mesma noite dos lobos
cose-nos a boca
e os ratos espreitam nos buracos
da cozinha
muitas vezes á espera da tua carne
ao mesmo tempo que a loiça desidrata
os abutres também
mas voar sem céu
é fodido como
amar sem experimentar morrer
dai que não faça sentido os nomes
da história
os indecifráveis vultos alados da personalidade humana
a glória
mesmo sem querer
do/no fundo do coração
havemos de morrer todos uma vez q seja.

os sortudos permanecem mortos
e
a eternidade não os magoa tanto.

20090319

que só de te ouvir
que só de te traçar a mão trémula no meu peito
me lembro de putas e pássaros
de vinho e de canções
da sarjeta imunda e tuberculosa que foi a minha adolescência
da vacina de ódio que inoculou o sol e as sombras

que só de pensar que existes
me vem logo á cabeça um monte de palavras dificeis
que me torcem por dentro qual lavadeira á beira rio
para confundir ainda mais o suor do passado
quando ouvíamos os negros do jazz baloiçando-se
ora dentro ora fora das suas próprias orbitas
e nos riamos embriagados de cegueira
cegos de vinho e paixão e sexo

isto tudo diz sempre tanto
não achas?
que só de te olhar
estendida nesse jazigo
reaparecem-me na memória as chamadas que te fiz para casa
enquanto agente de seguros, na ansia que o teu marido obeso e prenho de si mesmo
já tivesse morrido ou implodido
para termos uma ou duas horas de amor de ocasião
e depois dois beijos e adeus
tão prestável



e olha agora
o que é de mim
sem cigarros nos bolsos e comi um pastel
cago pra tudo
ninguém me conhece no teu funeral pensam que me enganei
porque eu estou aqui como se me obrigassem a levar com a ambiguidade
de ter um sol as costas
de estar sempre agradavelmente quente
e de me queimar

e no fim
diz-se sempre tão pouco,
não achas?

20090310

20090302

farto-me de pensar que tudo isto é só água e passa. seca. mas esta enxurrada
continua a empurrar-me para lugares com cores que não conheço. visto o casaco para
me sentir mais quente. osmose. de repente sinto os ossos húmidos outra vez como se
me espetassem facas de fogo na pele numa velocidade de morte. dói e passa. tiro o casaco:
quando chegamos ao inferno pior que a morte só imaginar um lugar mais fundo. ou seja, pior
não hei-de ficar. habituo rapidamente os meus olhos a esta incerteza que deambula num arame finíssimo
entre dois 100ºs andares e tudo parece calmo na sua essência.

no fim de contas, a verdade conseguirá sempre ser a maior das mentiras.