20101229

fiftififti

no outro dia
parti-te a meio
com meia faca
era meia noite
de outro dia
quando a meio da minha solidão
encontrei metade de ti
estou mais ou menos feliz
porque
não sei em que metade do mundo
perdi a metade que falta
e metade de mim acha
que a outra metade de ti
está bem mais perto de se encontrar
com o equador da outra metade do mundo

cuidado com todas as facas do mundo
não vá o inferno tece-las
e fazer com que andemos por aí
ás metades de metades a espalhar pedaços de nós
e depois é
um deus me livre
para juntar tudo
e ir passear
comer um gelado
ou arrumar a casa
que é grande e
metade de mim não chega
para rastejar de costas no pó do coração.
eu não sou uma puta tu é que funcionas na dinâmica do cara ou coroa com a minha moeda.

20101211

Plutão gelou-me a tinta

plutão é mais longe que ontem
tão longe que musica não se ouviu nunca
perto sequer
da sua orbita

plutão é mais frio que agosto
agosto de todos os anos
de todos os anos de todos os planetas

plutão é tão longe como o amor
distancias incalculaveis de negro astral
incomensuravelmente
distante

tão desconhecido e implacável como ele
e mesmo assim
desejo conhecer plutão
todos os dias
desde que te vi
ontem

20101028

Sento-me à lua, queimado de sono contra um muro de musgo natalício de agosto, as luzes como lamparinas de cemitério em novembro, vão bronzeando a alma leve e pueril da minha sombra projectada gigante nas linhas brancas
da estrada, que me dividem em dois de forma matematicamente assimétrica: os carros passam e ignoram-na, resignando-a á
vontade tetraplégica de levantar os ossos da carne de asfalto nocturno, correr de mim para uma pessoa menos feliz, ou menos
triste, ou menos apaixonada, ou menos igual a todas as outras pessoas menos felizes, ou menos tristes, ou menos apaixonadas,
ou mais idênticas a ninguém: e eu acomodo-me consciente da minha pequenez sorrindo como se tivesse um cromossoma a mais no
par encarregue de me dar juizo, ou o caralho que o parta que me faça achar sérias as coisas sérias: e não me faça cuidar
das minhas unhas antes de ter dedos bonitos, ou que me faça pensar que a minha boca dirá palavras de sabão azul, cheirosas
e bonitinhas, depois de chupar a porcaria do caralho do passado, ou mesmo antes sequer de aprender a dizer coisas bonitinhas,
ou de falar: e isto porque o filme não pára e os carros dilaceram-me o torso da alma em ultrapassagens ofuscantes e cheias
de sadismo gratuito de quem não quer mais nada que fugir destas lamparinas e ver desfocado o cliché natalício de agosto: vestindo-te:
vou ficando com a sombra mutilada e sorrio, vou ficando cada vez maior e a ausência de escrúpulos vai-me tornando cada vez
mais próximo da imagem que tenho de Deus: vestindo-te encontro a Natureza: ora igual ao mundo, ora indiferente, ora maior
sempre maior, como se tudo me fizesse, apenas, pequenas feridas na sombra: a Natureza da chuva e da loucura, a Natureza
escondendo-se em roupas de marfim em forma de tornados sobre a pele dos continentes, levantando em fúria o nosso amor
de ontem, destruindo a cama, puxando-lhe os lençois húmidos de chuva e de amor,de ontem, destruindo os pequenos castelos
e as enormes civilizações de germes que fomos criando: e juntamente com este natal de agosto, este calor insuportável
de fim do mundo, estas feridas cada vez mais indiferentes e a minha irresponsabilidade infantil, dá-me cada vez mais
a impressão, que a minha pequena existência, é enormemente similar, á mínima existência de Deus, acima de tudo
porque raramente encontro um ponto final suficientemente adequado para a beleza das minhas merdas

20101018

poema dos meus 84 anos

irmão,
voltaremos de pé
sob fervente água
flutuando no espaço dos oceanos
em cima do nosso próprio caixão
qual vontade louca de não cair
lá para dentro

nas margens
a inquisição espreitando
numa paciência eterna
de milénios

e a água,
digo-te irmão
fechando-se envelhecida
e cansada
dentro das suas tochas virgens
ao som dos nossos aplausos
e
a sua felicidade fervilhando em fumo preto
não das nossas cinzas
não da nossa morte
lacrará as velas
da nossa liberdade.

20100509

eu sei que aguentas, como terias aguentado se descesse em ti o terrível peso
das tetas de Deus, e se te tivesse tocado o Midas gigante
que é o meu ego ou se te tivessem comido viva os cabelos de Medusa do meu amor
intolerante imprevisível imperativo impiedoso imponente improvável e lamentável
é normal que aguentes, como um blindado no deserto, a apanhar com a chuva graciosa
de balas e a tempestade irrequieta de areia que é esta tripulação à deriva
no meu organismo, como uma infecção vestindo o meu coração de cemitério, flores
e lágrimas, e do outro lado, de jardins de Primavera, de flores e risos. como eu sei
que aguentas essa tortura que te suja a língua de beijos e te enche a boca de uma libido
fálica em estado puro. o derrame dos sonhos. em toda a dimensão esguia de um quarto. a janela
servindo para lançar notas musicais, melodias de prazer em chama chamando por todos, por todas,
numa canção sexual incapacitante, penetrante, incoerente.

eu sei que parece difícil mas tu aguentas, até as facas e o fogo e as pedras, esse teu
escudo incapaz é de uma qualidade que nem por sombras consegues imaginar. e incapaz és tu, pelo menos
incapaz de ver onde cresce luz, seguir-lhe o cu esconderes-te nela.

e tu e eu e todos

e eu sei que aguentarias a simples merda de sermos mortais, mas o tempo urge. e eu, tal como tu,
seria capaz de tudo, se por um momento, tivesse pensado em deixar que acordasses. para te maltratar
de forma consciente. teve que ser.

20100505

I'll pay it off in blood, let I be wed

Sinto-me velho desde que nasci. Não é que não signifiquemos nada a vida inteira. Porque significamos.
Mas e o significado que atribuímos às coisa? Não será isso que nos faz ser alguma coisa? E as pessoas não
são coisas. As pessoas existem e a morte é uma puta. Hoje sinto-me especialmente velho. Mas sinto-me velho
desde que nasci, como se tivesse nascido ontem, porque me diverti e hoje estou cansado, porque vi toda a alegria
do mundo, e a tristeza a tropeçar à minha frente e eu a tropeçar nela. Havemos de nos levantar os dois e seguir,
cada um com as suas mazelas, os nossos caminhos, qual guerreiros depois de uma batalha, mas até lá vale a pena
lembrar que nem a mais forte seca torna pequeno o caudal de amor que temos pelas pessoas. Infelizmente
somos estupidos ao ponto de construir barragens ao longo do leito do nosso coração e por estupidez esquecemos
que somos recém nascidos toda a vida, que nascemos com uma deficiência congénita incompreensível à medicina,
à psicologia, à bruxaria: a morte. E por mais horrível que seja a palavra, é essa deficiência que me faz sentir
velho desde que nasci. Eu não tenho medo de morrer, é natural, necessário. Mas a morte é uma puta,e eu só acho que nunca vivemos o suficiente para lhe pagarmos o que ela merece.
A tristeza vai continuar,
meu caro, em todos nós, porque é natural, é necessária. Estamos a pagar por ti, vivos, em pé, por ti, para irritar
suavemente, cada vez mais a cada dia que passa, essa puta que é a morte. E acredita, enquanto nos sentirmos velhos,
doentes, com dores, tristes e contentes, a morte perderá sempre. Por ti, meu caro, por todas as pessoas que têm
algum significado para nós, enquanto vivermos, a morte perderá sempre.


20100206

poema da saga infinita do aneurisma falhado

ás vezes acontece
sentar-me à varanda e parecer
que as montanhas do outro lado
me atacam
com facas
de fumo espesso
e todos os sinais
contados por mim
são vermelhos e
proibitivos
de tal forma que
até o sofrimento queda de me
abafar
e a dor
para de me amanhar
e a luz
cessa de me cegar
de tal forma que
enquanto lês isto parada
todo o meu mundo cessa
de ser lugar

e este movimento
de mil mulheres em
movimento
de mil beijos em
andamento
padece de uma condição imortal
e transforma todo o sentimento
em braços e pernas e torsos
e inunda toda a doença de sangue limpo
e a esperança aparece vestida de vermelho
pronta a dilacerar

canta rouxinol canta
ao longe o teu barulho soa-me
sempre diferente
e as abelhas são sempre de um mel azul
onde passam os meus olhos
não há sinais que me parem
a imaginação


e bêbado continuo
ainda capaz
de entornar dois ou três pingos de sangue
na lua
com precisão e clareza
como uma pétala de flor
a arder
no deserto.

20100131

poema do antes ou do depois da ressaca

um pingo de ácido
no acrílico da tua lágrima
amortecendo o pecado
nestes lençóis

ergue-se no espelho
uma multidão
um motim
um rio um mar
contra mim

meu corpo
tão meu
pintado
no céu

que termine a inocência
no espaço vazio
entre nós

essa indiferença que se levanta
entre o reflexo e a carne
não pode mais ser
tão clara quanto eu turvo

um pingo de ácido
lacrando o meu amor
por mim

de repente
enquanto moribundo o mundo olha
ergue-se no espelho
um novo corpo
imortal

e agora que falo só para nós
vai ser tão difícil perceber
como ver o sol rir ao luar
a morte de amanhã