20130521

Voltava a casa. Era fim de noite e os meus sentidos eram um baloiço embriagado, espreitava a espaços os meus braços,  sujeitando-me á decadência ditatorial das luzes da estrada, da janela aberta do sr doutor que a  esta hora acaba de ouvir Mozart e de beber uísque velho e se prepara para enfrentar mais uma noite de solidão, numa cama vazia como uma gaiola aberta, esperando que a luz me guie para bem perto de onde quero estar.

Ao mesmo tempo que a noite se torna um enorme poço de luz e trevas, o meu corpo de baloiço bêbedo desfaz-se num fumo com cores que não conhecemos. e tu vês as minhas pernas em cinza entrarem-te pelo nariz como o odor adolescente da cocaína, todo o meu torso, vísceras, braços, envolvem-te num sono que não se esquece e que te aquece como as manhãs de sol do inverno, pelos meus pulmões sobe até ao teu pescoço um beijo de veneno e a chuva  deste desencontro afaga-te os cabelos. Perguntamos se podemos descer mais, mas mais que isto é tocar no céu.

20130518

Todas as persianas da noite



Todas as persianas na noite,
Purpura de fogo

Esta velhice ansiosa
De querer salvar todas as almas
Sem saber que todas
Exasperam em convulsões de suor
Por entre as mãos das ondas
E por entre o suspiro brumal
Dos sussurros do amor

E do teu suspiro
Só persianas à noite
Que pensas serem casas a arder
O fogo que nunca aqueceu
As tuas mãos
E o mar em volta.

20130502

retrato de uma praia que nunca verei



Prostrei-me sem cor
Tolhido de um frio de morte
Que me descia corpo a baixo
Na mais séria impavidez
Perante o retrato da praia das luzes

A subversão do areal
À noite
Milhares de infâncias rochosas,
Velhices rochosas,
Oblívios do vento.

Como eu,

Que te cubro as pernas
Fechando os olhos da memória

Que te aperto os seios
Fechando os olhos da memória

Que me esqueço de ti
Fechando os olhos à memória.

Aqui onde os meus pés
Atingem o solo como espectros impossíveis
Desaparecendo no levadiço
Que me engole o corpo de pedra,
Da velhice óssea,
Da velhice cárnea,
Evocações do rancor das trevas.

Eu duas pinturas,
Um piano abençoado
Uma única nota desafinada
Uma arte em combate
Contra si própria
Com os pés presos na areia,
Os olhos cegos de falta de luz
A noite fria
E o teu corpo a fazer-me falta
Em todos
Os movimentos.

Eu açambarcando
Um cobertor

A ressaca
A tomar consciência da casa e não da areia
Nem da praia
Nem da noite

Eu um retrato envelhecido
de um corpo humildemente vencido
na doçura de um tempo humanamente parado.