20080217





não sei em que mês parei. chove água miudinha e delicada salpicando cada um de nós,
regando o nosso saco de ossos deambulante e diletante. chove para que nos sintamos um
bocadinho vivos e um bocadinho tristes. não sei em que dia caminho, em que ano. não
sei viver. sinceramente, não sei viver. não falo e as palavras que digo, não digo porque
ninguém ouve. não oiço porque entre mim e o mundo gerou-se uma constelação de silêncio,
cheia de estrelas e mundos de silêncio, cheios de pessoas e plantas de silêncio,
cheio de pó de silêncio. não me ocorrem palavras porque as esqueci no segundo em que
soltei o abraço do ar e me deixei cair no tempo. nada nos ajuda. nada me ajuda.
tudo o que me toca desaparece, esquece-me, desinteressa-se de mim. não ajudo nada.
o silêncio é a sina da morte e o passado a sua madrasta.
e acordo nestes dias, sempre mal resolvidos, sempre cinzentos, sempre com chuva,
sempre, por mais que não sejam, maus... e sempre o mesmo pensamento banal de
esquecimento, ou sofrimento.
falta pouco. hei-de ser deslembrado brevemente, esquecido. os meus amigos vão arranjar
vidas só deles, com pessoas importantes só deles, e eu que me julgo, certamente,
importante para alguns, vou-me esquecer deles, e vou entristecer ao tossir dos
ponteiros mancos do relógio: tic tacs descompassados a arrastarem um ponteiro atrás
do outro como fazem os coxos com as pernas. e as imagens que tenho deles na minha cabeça
vão permanecer em forma de nostalgia ou de pedra no peito. vou chorar, eventualmente,
a morte de alguns, a perda de outros, o facto de me terem esquecido, essencialmente.
as fotografias vitrinas imensas de pessoas que não posso tocar, nem ver, nem ser capaz
de reconhecer. lagoas de lágrimas . e na lista telefónica do telemóvel um exercito
de cadáveres pronto a atacar por ordem de letras. as mensagens as mesmas de há 10
anos, como se o tempo dos bons tempos tivesse perpetuado e estagnado, e a minha cara
é a mesma de um puto de 18 anos a dizer com certeza que tudo isto é uma baboseira
e que nos íamos ver todos os dias, todas as semanas, sempre, uma vez por ano, talvez
duas, ou três, nas festas de aniversário, na entrega de um prémio de carreira, quem sabe,
na entrega do Nobel da Paz a alguém... e as lágrimas, entretanto, a subirem-me pelo
rosto e a afundarem-se no meu olhar, a molharem-me por dentro, a chorar onde realmente
me dói. porque quando dói ninguém esquece. porque quando dói ninguém esquece. porque
quando dói, teimamos em não esquecer. porque queria doer em alguém. queria que não
se esquecessem de mim, por favor, de mim não, de tudo, de mim não. passar na rua
e saber que passaste por mim e não te dizer nada porque não te lembras que sou eu.
passar por ti e por ela, por ele, por todos vocês, juntos numa reunião casual de
esquina de rua, a falarem dos vossos magníficos empregos, das vossas esposas fieis,
bonitas e fantásticas na cama, depois eu a passar, passeando os bolsos cheios da
inutilidade que fui acumulando ao longo de todos estes anos que estão para chegar.
tenho medo, tanto medo. e a campainha toca, deslizo do sofá com os olhos em lágrimas,
escondo as fotografias no obscuro fim do sofá, abro a porta, antes limpo a cara, agora
sim, abro a porta, um miúdo de 18 anos entra, senta-se em frente ao computador, escreve,
escreve, escreve para que não se esqueçam dele, escreve, só queria doer em alguém,
não uma dor má, uma dor, um prazer, escreve, levanta-se, senta-se, passeia-se inquieto
na sua não existência, cai, caí e de novo o silêncio, essa merda de morte. tão espessa e crua,
a responder por mim. e de novo o silêncio, essa potencia de carne e osso que nos atormenta o medo,
a lembrar-me de tudo o que, miseravelmente, deixei que se esquecesse de mim porque aquilo
que sou, há muito que se deixou de ver no escuro.