20101028

Sento-me à lua, queimado de sono contra um muro de musgo natalício de agosto, as luzes como lamparinas de cemitério em novembro, vão bronzeando a alma leve e pueril da minha sombra projectada gigante nas linhas brancas
da estrada, que me dividem em dois de forma matematicamente assimétrica: os carros passam e ignoram-na, resignando-a á
vontade tetraplégica de levantar os ossos da carne de asfalto nocturno, correr de mim para uma pessoa menos feliz, ou menos
triste, ou menos apaixonada, ou menos igual a todas as outras pessoas menos felizes, ou menos tristes, ou menos apaixonadas,
ou mais idênticas a ninguém: e eu acomodo-me consciente da minha pequenez sorrindo como se tivesse um cromossoma a mais no
par encarregue de me dar juizo, ou o caralho que o parta que me faça achar sérias as coisas sérias: e não me faça cuidar
das minhas unhas antes de ter dedos bonitos, ou que me faça pensar que a minha boca dirá palavras de sabão azul, cheirosas
e bonitinhas, depois de chupar a porcaria do caralho do passado, ou mesmo antes sequer de aprender a dizer coisas bonitinhas,
ou de falar: e isto porque o filme não pára e os carros dilaceram-me o torso da alma em ultrapassagens ofuscantes e cheias
de sadismo gratuito de quem não quer mais nada que fugir destas lamparinas e ver desfocado o cliché natalício de agosto: vestindo-te:
vou ficando com a sombra mutilada e sorrio, vou ficando cada vez maior e a ausência de escrúpulos vai-me tornando cada vez
mais próximo da imagem que tenho de Deus: vestindo-te encontro a Natureza: ora igual ao mundo, ora indiferente, ora maior
sempre maior, como se tudo me fizesse, apenas, pequenas feridas na sombra: a Natureza da chuva e da loucura, a Natureza
escondendo-se em roupas de marfim em forma de tornados sobre a pele dos continentes, levantando em fúria o nosso amor
de ontem, destruindo a cama, puxando-lhe os lençois húmidos de chuva e de amor,de ontem, destruindo os pequenos castelos
e as enormes civilizações de germes que fomos criando: e juntamente com este natal de agosto, este calor insuportável
de fim do mundo, estas feridas cada vez mais indiferentes e a minha irresponsabilidade infantil, dá-me cada vez mais
a impressão, que a minha pequena existência, é enormemente similar, á mínima existência de Deus, acima de tudo
porque raramente encontro um ponto final suficientemente adequado para a beleza das minhas merdas

20101018

poema dos meus 84 anos

irmão,
voltaremos de pé
sob fervente água
flutuando no espaço dos oceanos
em cima do nosso próprio caixão
qual vontade louca de não cair
lá para dentro

nas margens
a inquisição espreitando
numa paciência eterna
de milénios

e a água,
digo-te irmão
fechando-se envelhecida
e cansada
dentro das suas tochas virgens
ao som dos nossos aplausos
e
a sua felicidade fervilhando em fumo preto
não das nossas cinzas
não da nossa morte
lacrará as velas
da nossa liberdade.