20070726

de ouvir os olhos na carne. II

Havia manhãs em que me levantava à hora do costume mas, por outra força qualquer preparava-me mais cedo. Lembro-me
do caminho, a minha mãe deixava-me por lá e o cheiro das árvores a encher-me todo. Depois entrava no carro outra vez,
íamos ao café tomar o pequeno almoço: torrada e meia de leite ( 1/3, nunca gostei muito de leite) ; e escola. Deus, só
eu sei o quanto aquela escola não gostava de mim. Os professores eram simpáticos, a sério, de uma simpatia do tamanho todo
de uma manada de touros em contramão, e eu gostava deles tanto quanto um gato de àgua. Nesse ano e ao fim de 3 turmas
mudaram-me para outra escola. Justificava-se, eu não gostava das pessoas, eram uma tremenda seca: odiava cada uma e só de pensar nos nomes
da chamada, perdia a vontade de ir às aulas. E não ia. Não interessa a ninguém, mas voltando...
Esta manhã fez me lembrar de outras que eram idênticas, antigamente. Está frio e o tempo feio. Estou com febre, calor,
estou vermelho e despido, estou a pingar suor. Olha,eu sozinho sou o Verão! Mas lá fora está um frio do caraças.
Gostava de ter outra força qualquer, hoje, que me levantasse. Talvez a de um sol em facas pelo meu corpo dentro,
ou a de um odio que me movesse a não mover, mas nada. Apático. É Verão: ausente, sou eu o Verão e não tenho paciência.
Preciso de uma voz qualquer que me mande recados e cartas registadas para casa a avisar os meus pais das faltas. Tanto
que deixei em falta ao longo destes aninhos por pura estupidez. Preciso que alguém me avise com voz rija:
- Se não vives, reprovas! Olha o que eu te digo meu menino.
Porque se eu não vivo, caramba, reprovam-me.
Preciso da mão que me guiava quando eu ainda não sabia os caminhos de cor. Cada vez mais sozinho. Cresço e não dou conta
porque continuo a ser um menino. Quer dizer, dou conta porque agora ando sozinho, sei dos caminhos e de como caminhar mas
não tenho vontade. Preciso ... sei lá. Vendo bem, o que eu gostava mesmo era de te ouvir os olhos na minha carne.
Crescer na tua cama e morrer por lá.
E praia a ser Verão, encostar-me na tarde com o sol a fazer-me a cama a outra força qualquer que nasce à noite e o mar a dizer por mim, baixinho:
sinto-te arder comigo, gosto tudo, teu, eu, tu, que se foda o mundo...