20070528

3

E tu sabes bem o quão idiota és, mãe. Que ideia: filho, eu. Eu não fui teu filho, nunca!
Eu não sou ninguém, eu não sofro porque eu não sinto, não choro porque não tenho olhos; estes
olhos não são os meus, nada aqui é meu, sou uma farça, sou um azar e tu a desejar ter um filho, toda morta aí estendida
no chão como fazem os tapetes secos dos museus .
O tempo não passava, porque o tempo passeia-se pelo que sofre, andava para trás e para a frente
na minha cabeça como um serrote ferrugento e silêncioso que me ia cortando pedaços de juventude,
de infancia, de um homem que não sou, de uma mulher, de mim ou de ti, tantas vezes sobrepostos um no outro.

- Mãe!

Foi então que te levantaste, abriste muito os olhos e sorriste para mim. Encontraste-me o olhar, o mesmo
que tinha deixado fugir pela sala, pela janela, pelo céu escuro da tarde que adormecera há alguns séculos.
Foi então que me vi, mais eu mais puro, mais seguro - mais confuso, nos teus olhos.
Foi assim que me cingi ao meu corpo de 5 anos e deixei de pensar que me tinhas abandonado,
engoli todas as palavras que não eram palavras da minha idade e fingi não perceber o mundo como fingem
as crianças da minha idade para sentir que podem contar com os braços de toda a gente quando todo o mundo
já tiver acabado.
E assim acabou o mundo. Não sei ao certo o que se passou depois do fim, não sei se perdi de novo aquele corpo
e mergulhei noutra pele, noutro fim. Não sei o que foi feito de ti mãe, só me lembro do teu sorriso e dos
teus olhos muito abertos a serem eu : como o céu no verão, sem pássaros, nem àrvores, nem nuvens a atrapalhar ; nunca fiz muito
sentido, nunca me quis ver ao teu lado com o corpo de outra gente, nunca pensei em nunca pensar.
Mas não pensei. Não quis pensar. Mãe, eu sou tu : a minha mãe, a querer uma mãe, no meu corpo, que é o teu corpo.

Mãe, morri contigo sem morrer porque eu sou tu, porque mãe, tu és eu, mesmo sem quer.

20070526

2

Eu parado, feito da matéria com que se fazem as pessoas : género de carne, sol e água, osso para dar carne ao
corpo e uma espécie de aura que me afaga, que me sustem o pensar e que me dá o mesmo, a toda a hora.
Eu, a preparar discursos que não vou dizer a ninguém, a soltar frases para o branco sempre igual do tecto,
a estender um braço à musica que vai saindo e que vai batendo e perfurando as paredes do prédio. Os papéis
todos, todos os mesmos.
Aqui não há muito porque gritar, as equações são simples, aliás, são impossíveis e quando as coisas se tornam impossíveis
é simples saber-lhes o fim, aqui é o fim, aqui onde as coisas são feitas da mesma matéria que eu : são pessoas,
dizem-se pessoas e eu de pessoa não tenho nada; não quero ser como eles : género de carne, sol e àgua, osso para dar carne ao
corpo e uma espécie de aura que me afaga, que me sustem o pensar e que me dá o mesmo, a toda a hora.
Eu, parado. Não quero morrer queimado, nem quero morrer sequer. Não quero cair no momento em que me vou a
levantar para andar e correr. Não quero viver eternamente, mas não quero morrer. Morrer só acontece
aos tolos que se deixam morrer, idiotas! Eu não me vou deixar morrer assim, facilmente, como as pessoas
que se cansam, que se aninham numa cama, que se alugam a uma doença que não lhes paga nada e que morrem à
fome de vida porque a doença se cansou, fechou as portas e saiu sem pagar a renda, a rir-se da cara do senhorio
que já nem cara tem, que é agora comido sabe-se lá... pelo quê.
Continuo a entoar cânticos com palavras que não me pertencem, a falar para as paredes. Continuo aqui, mãe,
quietinho à espera que acordes; nunca te deixaste morrer, sempre foste assim, forte e fria e nem mesmo assim
te escapou a tentação de lhe dar o peito .
Cada vez mais inúteis.
O meu corpo não é meu, já te tinha dito. Funciono como uma peça, uma pilha num engenho estupidamente sólido
que se vai montando ao longo dos anos e que me vai fazendo, a cada milesimo de segundo que se move, pensar que
não sou quem sou, quem aparento. Sou um conjunto de memórias de outro eu que fui perdendo no meio dos meus outros eus,
das outras pessoas que fui e que já não sou. Sou um conjunto dessas pessoas todas que usei sem pensar que as usava,
sem sentir que as possuia e que as deixava longe de si. Tudo por tua causa, mãe, e agora estamos aqui os dois: cada vez mais
inuteis. Tu apodreces, eu não sei viver aqui, preso a este nojo de pele e osso que sou por fora, que não sou por dentro.
Como tu, já não tenho força para me levantar mas não vou morrer. Não sou idiota.

20070520

1

A minha mãe a gritar bem alto : deita fora isso. A minha mãe a gritar bem fundo : isso não é bonito, deita fora
isso. A minha mãe no chão a gemer : chama uma ambulância. O fumo quente a transpirar a arma : o vento acalma, a
tarde deita-se e adormece, o meu corpo espera sentado ao lado da minha mãe, uma mulher sempre fria e sempre
assim. Sempre ela, sempre à espera de algo que eu não sou, sempre à espera de um eu que nunca encontrei :
- Ajuda-me!
Uma mãe, sempre à espera de um filho, de um filho de um corpo que possuí, de um corpo que não sou eu, de um
filho, não de mim :alguma coisa que não sou filho.
A minha mãe a soprar-me ao ouvido : porquê? , e o mundo a caminhar em passo de corrida sem esperar por mim,
ali sentado a repousar o meu pequeno corpo que continua a respirar e a fazer-me sentir
que continua respirar-me para fora, a expulsar-me de si, a ter nojo de mim, a dar-me dores
e fome e sede, a ser um corpo que não me quer arrastar, a querer uma mãe. A querer uma mãe.

20070511

Só gosto tanto de ti quando não vejo um tanto de luz.

é estranho ouvir-te a voz. rodear-me de 'tus' a toda a hora, pensar na tua ausência à noite de uma luz, à noite sem luz,
sem luz no dia, ouvir-te falar é estranho : não tens boca, e mesmo assim calo-me a olhar para ti.
és igual às pessoas que são iguais a ti, és igual a mim, quase nunca igual a mim. és maior que eu
quando queres e és mais pequena que eu ao mesmo tempo que o tempo se esconde na luz. é estranho ouvir-me falar de ti,
contar que não gosto de te ver presa a mim, és maior e mais escura que eu, corres mais ou arrastas-me para trás com o teu peso
que nem pesa mas faz-me pensar que não deixa passar tanta da luz que é o pouco que pesa neste meu corpo magro
e sem força.
seja o dia meio cinzento, as coisas meias feias, os pneus do camião que te passa por cima meio vazios , tu não morres.
pergunto-me, dos pés à cabeça dos dedos, o que fazes tu quando eu durmo? tu não dormes.
e és estupida, como eu sou estupido e como tu és estupida, podias ser a morte e eu podia estar a personificar-te
para te chamar nomes e para te odiar, mas não. não passas da minha sombra, às vezes chateia-me ganhares-me as corridas
outras vezes sinto-te a falta por seres a companhia que não me chateia no caminho de casa e outras vezes
questiono a tua utilidade
- eu também te amo.
e continua a ser estranho ouvir-te a voz.

20070505

adormecer morrendo

não quero cair de costas na rua reza
e pensar fora de tudo
porque dói tanto
saber que até o conjunto de todas as caras
me faz lembrar a tua cara
e saber que o conjunto de todas as caras
não é a tua cara.

abre-se um rasgo
e a carne,
vermelha e viva,
adormece o mundo inteiro

que não sei nada
porque me apetece chorar
e morrer
e vomitar e morrer
e vomitar o meu morrer

porque tu
me rebentas toda a vontade de viver
e não tens essa responsabilidade
é da minha culpa.

e eu quero chorar,
como nunca,
como sempre quis,
como nunca pude,
como nunca fiz por poder
nem por querer.

ardes em tanta vida aqui por dentro,
que já nem há mais espaço
nem há mais nada.
a luz varia entre o não existir
e entre o fugir,
correndo,
de existir aos meus olhos

e assim não consigo ver
o quão bonita te faz a luz
e a escuridão
e o quão bonita és
quando o silencio se alia
ao misto de luz e escuridão
em que acredito.


assim,
só quero descer as minhas mãos pelo teu rosto
e cheirar de novo o teu cabelo
descer o frio dos meus olhos nas tuas mãos
deixar cair o meu corpo,
silenciosamente,
no enforcamento do meu peito que explode
e adormecer morrendo

aqui,
à tua frente,
como se as minhas ultimas palavras fossem o teu rosto
e o jazigo onde me sepultaram
as tuas mãos
ainda quentes como a terra
e suaves como este vazio
que vai dançando à minha volta.