20090319

que só de te ouvir
que só de te traçar a mão trémula no meu peito
me lembro de putas e pássaros
de vinho e de canções
da sarjeta imunda e tuberculosa que foi a minha adolescência
da vacina de ódio que inoculou o sol e as sombras

que só de pensar que existes
me vem logo á cabeça um monte de palavras dificeis
que me torcem por dentro qual lavadeira á beira rio
para confundir ainda mais o suor do passado
quando ouvíamos os negros do jazz baloiçando-se
ora dentro ora fora das suas próprias orbitas
e nos riamos embriagados de cegueira
cegos de vinho e paixão e sexo

isto tudo diz sempre tanto
não achas?
que só de te olhar
estendida nesse jazigo
reaparecem-me na memória as chamadas que te fiz para casa
enquanto agente de seguros, na ansia que o teu marido obeso e prenho de si mesmo
já tivesse morrido ou implodido
para termos uma ou duas horas de amor de ocasião
e depois dois beijos e adeus
tão prestável



e olha agora
o que é de mim
sem cigarros nos bolsos e comi um pastel
cago pra tudo
ninguém me conhece no teu funeral pensam que me enganei
porque eu estou aqui como se me obrigassem a levar com a ambiguidade
de ter um sol as costas
de estar sempre agradavelmente quente
e de me queimar

e no fim
diz-se sempre tão pouco,
não achas?

20090310

20090302

farto-me de pensar que tudo isto é só água e passa. seca. mas esta enxurrada
continua a empurrar-me para lugares com cores que não conheço. visto o casaco para
me sentir mais quente. osmose. de repente sinto os ossos húmidos outra vez como se
me espetassem facas de fogo na pele numa velocidade de morte. dói e passa. tiro o casaco:
quando chegamos ao inferno pior que a morte só imaginar um lugar mais fundo. ou seja, pior
não hei-de ficar. habituo rapidamente os meus olhos a esta incerteza que deambula num arame finíssimo
entre dois 100ºs andares e tudo parece calmo na sua essência.

no fim de contas, a verdade conseguirá sempre ser a maior das mentiras.