20071018

olá às coisas do fim do mundo

há boas noticias do fim do mundo. consta que terminamos a guerra em vitória. cheios de sangue nos
cotovelos e olhos sem olhos, só o buraco e nada mais, tudo à mostra, a ver-se a carne de dentro
que não se devia ver, ossos de fora da carne, enfim: nós do avesso.
ouvi dizer que lutaram crianças, nasceram crianças de mulheres que outrora crianças e morreram
crianças como pessoas: olhos de fora, tripas ao relento do lado errado, braços em asas a voar pelo
mundo, pernas presas a minas ( não de ouro ) que desapareciam num assobio grave, pelo ar, como membros
alienados à força de um parto: a urgência de nascer fora do corpo, abrir vida e viver, mas tudo morte a pairar,
a planar como o anoitecer de uma cidade sobre os prédios altos, sobre as árvores, sobre as casas, sobre as pessoas,
sobre o inferno.
mas, comunico, há boas noticias aqui do fim do mundo no que toca a carnificinas: temos carne para muita comida e
comida para muito tempo.
do outro lado, se por qualquer razão há um pequeníssimo cheiro a vida, aqui, só dos cadáveres mais vaidosos.
a lama onde caminho é espessa e vermelha, é como caminhar pela areia molhada de sangue, viver aqui bem que podia ser
descrito como viver numa veia, num coração pulsante. em mim, só a vontade de partir porque acabou e falta-me um
luar a cair do céu nas noites onde as nuvens adormeceram e onde o único barulho que interrompe o silencio perpetuo da
madrugada é um gato negro a derrubar um caixote do lixo, não bombas, nem fantasmas, somente o cheiro das flores noctívagas
que se passeia pela rua onde vivo e um gato, ou um cão, ou uma pessoa que chega a casa do trabalho cansada e com vontade
de se deixar cair e morrer até amanhecer, finalmente, no mundo das coisas da noite.
no mundo das coisas da noite, aqui no fim do mundo só me lembro de ser noite e todas as manhãs que me vêm à memória
diluem-se no profundo escuro das noites que invento, das noites que isto me parece.
mas é tudo morte, ganhámos e a pergunta, deus do céu:
- caralho, vale a pena? valeu a pena?
claro que não valeu, nada assim...não só o meu, o sangue daquela gente também me magoa quando me passa pelo coração,
o sangue daquela gente não é o meu porque o meu sangue já não existe, ou é a água que me lava a cara o sangue daquela gente. porque o meu sangue
já não é meu, mas das almas que o levaram, para longe de mim, para longe do fim do mundo, para longe do meu inferno: para
o paraiso.

3 comentários:

David Miranda disse...

está brutal, intenso, muito muito intenso. senti toda a dor e angustia da guerra nas tuas palavras misturadas em sarcasmo. brutal.

um forte abraço

telma disse...

que texto fantásrico. dos teus melhores!
parabéns. *

Tiago disse...

Tu és grande.
Não é só de altura.