20071023

acto de fazer nascer

contemplamos a luz
como cegos
ou recém-nascidos
e mesmo assim
inocentes
fodemos

não passamos de animais
nada que seja de ver
lentamente
nos espaços que nascem nas sombras
somos feios
e desajeitados

entre o meu corpo
e o resto do mundo
há uma pele queimada
pelo desuso

porque somos a essencia
natural
de uma natureza narcisista
que ganhou de si propria um pensamento falso
que nos faz sonhar menos
pensar mais
agir contra a lei natural das coisas
que não existe para existir

as nossas escamas
são flocos de sangue
em campos de batalha
imobilizadas pelas espadas
viscerais da saudade
e da vida

contemplamos planos
como se a nossa infância.
o nosso amor,
os nossos sentimentos
doessem

e a mim
só a cabeça me dói
não de pensar
nem de sentir saudade
só de sentir
uma dor de cabeça que me dói

inocentes
como animais
recordamo-nos assim
do prazer
das mãos que criaram tornados
dos gritos e dos gemidos
da dor que se perdeu
no momento
em que nos olhamos
e nos nossos olhos de poço
nos afogamos
nascendo.

20071018

olá às coisas do fim do mundo

há boas noticias do fim do mundo. consta que terminamos a guerra em vitória. cheios de sangue nos
cotovelos e olhos sem olhos, só o buraco e nada mais, tudo à mostra, a ver-se a carne de dentro
que não se devia ver, ossos de fora da carne, enfim: nós do avesso.
ouvi dizer que lutaram crianças, nasceram crianças de mulheres que outrora crianças e morreram
crianças como pessoas: olhos de fora, tripas ao relento do lado errado, braços em asas a voar pelo
mundo, pernas presas a minas ( não de ouro ) que desapareciam num assobio grave, pelo ar, como membros
alienados à força de um parto: a urgência de nascer fora do corpo, abrir vida e viver, mas tudo morte a pairar,
a planar como o anoitecer de uma cidade sobre os prédios altos, sobre as árvores, sobre as casas, sobre as pessoas,
sobre o inferno.
mas, comunico, há boas noticias aqui do fim do mundo no que toca a carnificinas: temos carne para muita comida e
comida para muito tempo.
do outro lado, se por qualquer razão há um pequeníssimo cheiro a vida, aqui, só dos cadáveres mais vaidosos.
a lama onde caminho é espessa e vermelha, é como caminhar pela areia molhada de sangue, viver aqui bem que podia ser
descrito como viver numa veia, num coração pulsante. em mim, só a vontade de partir porque acabou e falta-me um
luar a cair do céu nas noites onde as nuvens adormeceram e onde o único barulho que interrompe o silencio perpetuo da
madrugada é um gato negro a derrubar um caixote do lixo, não bombas, nem fantasmas, somente o cheiro das flores noctívagas
que se passeia pela rua onde vivo e um gato, ou um cão, ou uma pessoa que chega a casa do trabalho cansada e com vontade
de se deixar cair e morrer até amanhecer, finalmente, no mundo das coisas da noite.
no mundo das coisas da noite, aqui no fim do mundo só me lembro de ser noite e todas as manhãs que me vêm à memória
diluem-se no profundo escuro das noites que invento, das noites que isto me parece.
mas é tudo morte, ganhámos e a pergunta, deus do céu:
- caralho, vale a pena? valeu a pena?
claro que não valeu, nada assim...não só o meu, o sangue daquela gente também me magoa quando me passa pelo coração,
o sangue daquela gente não é o meu porque o meu sangue já não existe, ou é a água que me lava a cara o sangue daquela gente. porque o meu sangue
já não é meu, mas das almas que o levaram, para longe de mim, para longe do fim do mundo, para longe do meu inferno: para
o paraiso.

20071015

15 de Outubro, 2007, 2 e meia da manhã, segunda-feira a dormir.

E suponho que é aqui que, amigavelmente, encontro a boa vontade à minha espera, deitada solenemente no parapeito do sono esperando que eu a leve pela mão a passear pelas coisas que não entendo. Ora, estou indignado. E o sono não vem. Só lá vive a vontade de dormir.

Não tenho outra vontade nenhuma, motivação, prazer… Ando aqui a assentar tijolo numa casa já feita, a ouvir o barulho das obras que se fazem em mim como sons malucos de um experimentalista nas percussões, quando o que quero é sempre sossego e quando o tenho, sempre barulho.

É que já ninguém está acordado. Só a minha mão e este papel que faz barulho à canetada: dou-lhe canetadas frias e cruéis ao sabor da noite (e um monte de onomatopeias que não existem a surgirem-me do fundo). E tem sido assim, todos os dias, o Amnesiac em repeat pela noite fora até que adormeço, um papel que vou usando para escrever tudo e, de certa forma, esvaziar-me para que caiba em mim o sono ou então, para ouvir-te falar. Como era bom ouvir-te falar. A tua voz doce agarrada ao meu braço e a sorrir-me com os olhos a brilhar e eu queria lá saber o que estavas tu a dizer porque para mim bastava que o dissesses, com os olhos, agarrada ao meu braço e a saltar de alegria como uma criança feliz sempre feliz.

É incrível, que vontade que tenho de morrer para ver como é que é estar morto. Ou para dormir, simplesmente. Para viver sem sono e com os olhos abertos. Tão fácil culpar outra pessoa dos males que temos. Tão fácil inventar situações que existem mesmo mas que hiperbolizamos para que tenham pena de nós. Às vezes sinto isso, sinto que os meus problemas são ninharias mas quando falo com alguém parecem cataclismos à escala mundial mas, não me compreendam mal, é só relativo ao meu tamanho e eu sou enorme. Sou mesmo grande e a superfície de contacto torna-se muito maior pelo que a dor dói-me mais a mim que às pessoas mais pequeninas. Mas nem quero que tenham pena de mim, só quero que me oiçam e que me digam depois :
-E vai tudo ficar bem
Eu queria era dormir. Ou matar-me, mas com o sono que estou, sinceramente, nem um suicídio me saía bem e ainda sujava o quarto. Mais um problema para limpar depois. Vou estar mas é quietinho a olhar pró tecto que se vai enterrando no 2ª andar, no 3º, no céu, em mim, a tua cara, …

20071010

do Livro de Poemas De Amor

repetidamente batendo
uma fome que são estrela a cair na noite
não há noite quando te vejo
e não faz sentido pássaros a esta hora
voar sobre a minha cabeça
e são estrelas a alimentar
que prendo em amarras
que solto quando a minha boca
toca os lábios que deixaste desenhados
neste lugar
quando inundaste o mundo
e fugiste
e o mundo era todo lágrimas
que me queimavam o espelho
e eu só queria
ter corpo ainda
que se sacrificasse
para eu o sacrificar
e distrair a dor
que me faz andar
fugir como tu
para onde tu estás
e eu só queria
fugir como tu
para onde tu estás
do nada cair na palma da tua mão
sentir o teu perfume morrer atrás de ti
quando passas e eu cego
do nada ver-te andar
ao longe
talvez sorrir
ou
acenar
e morrer.

20071006

inércia,
a mancha arrasta-se
ao longo
na minha cara

são raras
as caras
que falam
e pouca gente
escreve que se oiça

nós
a nossa pequena existência
e um mar à nossa frente
à nossa volta
dentro de nós

a minha dor nas pernas
o teu sono a
empurrar-te a cabeça

é real, meu, inteiro:
é tão,
tão difícil abrir os olhos...

tão mais fácil imaginar que te respiro.