20110315

praticamente nada do que me lembro existe. ou existiu. não são raras as vezes em que dou comigo,
numa segurança de pilar, a pensar para o infinito naquilo que tenho, no que tenho realmente
e naquilo que por força não sei bem do quê me foi caindo aos pés e não tenho nada. palavra de honra
que não tenho nada que seja realmente meu. é tudo emprestado, acredito que a minha própria vida
me foi emprestada por alguém que se cansou dela, alguém que a achou demasiado chata e se cansou
dela como se cansam os cães de correr em torno de si próprios: cansaram-me de mim e :
- toma tiago, é tua. agora usa-a melhor que eu.
e a verdade é que não a consigo usar melhor que ninguém.
dá-me uma paz de cegueira inacreditável imaginar o dia em que por alguma razão menos obvia acorde e
pense que estou a viver por dentro de mim. porque nem eu me sinto realmente meu. eu não sou assim,
desta forma, não tenho as atitudes que este corpo arrasta nem falo como eu. eu sou diferente de mim,
completamente o avesso de mim. imaginar uma chuva de raios de sol tocada pelo vento, eu a fugir
mas o calor a correr comigo. imaginar uma derrocada de chuva a soterrar-me o espírito, a arrancar
de mim o espelho da alma, depois a alma, depois a dar-me de novo os meus próprios ossos, a minha carne,
o meu sabor. dá-me uma paz de cegueira imaginar que não tenho alma, nem espírito, nem essas inutilidades
todas que as pessoas inventam de si e sentir-me meu. e mais que sentir-me meu, sentir.
é tão isto : não me lembro da nada que existe, sinto tudo tão distante .
e dá-me uma paz de cegueira imaginar que resolvo o mundo como quem resolve uma equação
- y=2 e x=1
só que em vez de números, palavras, que não são minhas, porque eu não digo isto, eu nunca aprendi a escrever
mas é por teimosia, teimosia persistente, que este corpo, cansado de si próprio, dita coisas que nunca pensei
conseguir dizer. mas é por teimosia, teimosia firme de pilar, que este corpo, mesmo cansado de si próprio,
continua a viver e, cada vez mais, a afastar-se daquilo que realmente sou.

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