20070613

Há de haver vida que me explique o que é a alma.

Batem, correm á minha frente.
A minha visão cada vez mais turva reclama um lugar longe que não consigo ver. A rua continua parada
no sol, tão derretida como eu aqui sentado a pensar no tempo de quando eu ainda era jovem e trabalhava
naquela empresa de conservas onde estava tudo bem quando tudo estava calado e o trabalho era simples
e sempre o mesmo : maquina, liga, desliga, plástico, caixas de papelão, carregar.
Agora batem, correm á minha frente e eu não os vejo, cego, quase cego.
Agora não trabalho, os meus dias são sempre os mesmos, são sempre segundas-feiras, ou terças,
já não me lembro em que dia parei de ter dias, mas não são segundas feiras, devem ser terças, porque ás segundas feiras era dia de jantar em casa da minha mãe e a minha mãe, coitada, já morreu como tudo o resto, por isso deve ser terça feira, hoje. Ás vezes tenho que ir ao médico mas fora isso,
passo os meus dias sentado aqui na tasca do Alemão a ver as nuvens, algumas vezes o sol, outras vezes
chove, mas o sol é sempre o mesmo, as nuvens têm sempre as mesmas formas e a chuva cai sempre
no mesmo sitio, tão previsível que até quase cego fujo dela sem que ela me apanhe.
Os meus braços servem agora para mexer a colher do café e segurar uma bengala que me dá
um ar de maestro importante ou de figura da classe alta do século XVIII mas lá me saem os pulmões
nesta tosse de tabaco de anos e anos e lá se vai a compostura com os bois. Diga-se que deixei
de fumar em 73 quando a minha avó morreu, dizia sempre :
- Zé! ainda desgraças a tua vida com isso.
E a verdade é que deixei de fumar mesmo naquele ano. Voltei no ano seguinte e até hoje a única
coisa que o tabaco me desgraçou foram estes dois dedos amarelos.
A minha avó...Lembro-me do dia em que ela morreu. Tinha os pés atados ao sono de uma criança, eu sugado pelo
fogo da noite a contar estrelas em pleno dia. Não havia ninguém em casa, não havia nada em
casa, embalava no silêncio uma vontade, um querer tudo bem. Não havia ninguém.
- Sabes, é tudo uma treta. hoje acordas, amanhã nunca mais te levantas, depois de amanhã os teus dentes
apodrecem e acabam por cair, tu ficas sem sorriso e ficas sem vontade de viver e tornas-te sozinho
num monstro, em ti, numa pessoa que desconhecias mas que sempre foste : um monstro.
Transpirava razão por todos os lados. Lembro-me do dia em que ela morreu como se fosse o dia
em que eu nasci, lembro-me dela como se fosse eu que estivesse ali, uma criança.
Agora até eu pareço a fotografia que tenho dela, com ela e comigo. Estou igual,
nem me olho ao espelho, aquela fotografia diz tudo. Sou eu, ali. Igualzinho. Não mudei
nada. O cabelo caiu, estou cheio de rugas, aquele fato de casamento já não me serve,
já não tenho casamento, já não trabalho, os dias são todos iguais por isso continuo o mesmo,
igualzinho àquele homem da foto que sou eu.
Engraçado, batem correm a minha frente e eu continuo sem os ver. A cerveja a fazer pose
na mesa, o Alemão a mal dizer a política, a mulher do alemão a arrastar um cancro nos intestinos
que vai ser diagnosticado muito tarde, o Alemão a correr á sua maneira para fechar a conta e sacudir a mesa
porque há clientes novos, o vento a sacudir o Alemão ( fraco, quase osso ) e o meu pouco cabelo,
a minha mão a passear pela mesa com dois dedinhos um á frente outro atrás, depois mudam e imaginam-me
quando não eram eles a andar, a minha
cabeça a escrever isto, o meu coração que teima em bater sempre igual...
Se ao menos estivesses comigo, se ao menos falasses e destruísses estas coisas todas iguais,
sempre iguais, que se repetem como o meu trabalho de antigamente. Se ao menos eu pudesse
dizer que me fazes falta e que eu te oiço, agora eu oiço, prometo!
Raios! Há de haver uma vida qualquer, de alguém, nem peço uma minha, de alguém, que me
explique o que é a alma. Olha para mim, uma data de anos, velho caquéctico quase morto,
a viver sempre igual sem vontade e sem querer e ninguém me diz o que é a alma. Para mim
a alma é um sitio estúpido que as pessoas que não têm dores inventam para que lhes doa alguma coisa. E escondem-me o que é a alma! Eles escondem-me o que é a alma para eu não perceber o que é a alma! como uma criança, tratam-me como uam criança, respeito! Digam-me que não existe, digam... eu não choro, diga, vá lá...
Eu não tenho alma! Sei lá o que é a alma, os meus joelhos doem pra caraças: são a minha alma?
Acho que é isso, afinal a minha alma são os meus joelhos e agora batem correm a minha frente
e eu não os vejo, preso a esta cadeira de rodas, já nem joelhos tenho, maldita diabetes que mos levou.
E a minha alma, a minha alma são os meus joelhos! A minha alma eram as minhas pernas, as minhas almas, tiraram-mas hoje
e agora que cego, vejo melhor que nunca, é melhor voltar para casa, deixar o Alemão a chorar pela mulher,
deixar-me a mim a chorar em casa, apodrecer, daparecer, ser, er,r,.

5 comentários:

Anónimo disse...

oh Tiago,poça que tu és brutal.
esta fantastico!
um beijo

Anónimo disse...

és o maiooor!

Anónimo disse...

tens um blog que já percorre pla fama, e eu li isso em primeira mão!
segunda ou terceira.

guru :D

Anónimo disse...

eu ainda os consigo ver. mas ja nao lhes passo cartao.

David Miranda disse...

sabes depois de ler o teu blog de uma ponta a outra, acho fantástico como tu consegues abstrair te tanto da tua personagem sem no entanto a deixares. pelo menos é essa a ideia com que fico depois de te ler...

este texto está sem duvida brutal, fiquei com aquele travo na boca de quem quer continuar a ler mas o final existe.

um abraço cuida te